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Onda de cancelamento e alta no preço: o que será dos apps de transporte

Robson Ventura/Folhapress
Imagem: Robson Ventura/Folhapress

Abinoan Santiago

Colaboração para Tilt, em Florianópolis

18/10/2021 04h00Atualizada em 20/10/2021 14h52

O mês de outubro ainda não acabou, mas o motorista de aplicativo Lucas Fonseca, 26, já tem uma certeza. Vai fechar a renda com R$ 1 mil a menos antes de novembro. Ele é um dos mais de 1,6 mil colaboradores banidos pela Uber por recorrentes cancelamentos de viagens.

A recente exclusão foi a maneira encontrada pela empresa para driblar a reclamação de passageiros pela espera excessiva por uma viagem. A medida, segundo especialistas ouvidos por Tilt, levanta o debate sobre o atual modelo de negócio dos aplicativos de mobilidade: Qual o futuro das plataformas e até quando poderão se sustentar em meio às mudanças de valores dos insumos que fazem um carro rodar?

No caso de Lucas, ele saiu da plataforma em 21 de setembro. Motorista em Tatuí (SP), ele admite ter recusado diversas corridas, mas por considerar injusto o valor aferido pelo aplicativo para os percursos em meio à disparada do preço dos combustíveis. Foram canceladas 1.105 de 1.197 solicitações.

Lucas Fonseca, motorista em Tatuí (SP) - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Lucas Fonseca, motorista em Tatuí (SP)
Imagem: Arquivo Pessoal

"Às vezes não valia a pena porque era menos de R$ 1 por quilômetro rodado e com o preço que está gasolina é impossível. Além disso, a própria Uber diz que não sou obrigado a aceitar. A empresa, na verdade, baniu todos os motoristas que sabiam fazer as contas", declarou o motorista, que é bacharel em direito.

No último ano, a gasolina aumentou cerca de 40%, ultrapassando os R$ 6 por litro, e o etanol mais de 60%, de acordo com o IBGE; o aluguel de veículos subiu 30%. Isso causou a diminuição de 25% da frota de motoristas somente em São Paulo, em 2021, diz a Amasp (Associação de Motoristas de Aplicativos de São Paulo). O número não é confirmado pela Uber nem 99.

Lucas se formou na faculdade pouco antes da pandemia e viu nas corridas uma chance de ter uma renda enquanto tenta tirar a carteira de advogado — da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil)— após o período de crise sanitária. O jovem não quer mais trabalhar com o app em um cenário pós-pandêmico.

"Quero parar o quanto antes, ainda mais com os aplicativos explorando cada vez mais", diz o motorista que ainda reclama por não ter o direito de se defender do banimento. "Excluíram sumariamente, mesmo com nota 4.97".

A mesma situação vive João Pedro* (nome alterado a pedido do entrevistado), que trabalha em São Paulo. Quando a filha nasceu, há três anos, deixou o cargo de vendedor em um shopping e passou a viver das corridas na madrugada para conciliar o cuidado com a criança durante o dia.

"É humanamente impossível aceitar tanta corrida. Eu terminei uma e simplesmente apareceu a mensagem. Às vezes, cancelava por não ter interesse financeiro pelo preço da gasolina e por segurança, já que trabalho na madrugada", justificou o motorista. Ele declinou de 2.990 dos 3.198 chamados na Uber e agora usa outros apps.

Modelo de negócio aguenta até quando?

A Uber e 99 são as companhias preferidas pelos brasileiros para deslocamentos nas cidades Brasil afora, segundo a Statista — empresa alemã especializada em dados de mercado. Mas, apenas ser o "queridinho" dos brasileiros não basta para os apps continuarem economicamente viáveis no país, argumentam especialistas ouvidos por Tilt.

Com menor demanda de condutores para trabalhar via aplicativos de transporte — seja pelo banimento ou saídas por conta própria —, as empresas que trabalham nesse setor precisam rever suas estratégias para não ver o modelo de negócio desmoronar.

O pesquisador Victor Barcellos, do ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro), explica que os aplicativos de mobilidade são novos, com menos de 15 anos no mercado, o que direciona a estratégia de valorização da empresa para ações de captação de passageiros. Por isso a corrida atualmente acaba menos vantajosa ao motorista.

"A experiência do passageiro está em primeiro lugar, mas com o passar do tempo, o outro lado da moeda, que são os prestadores de serviços, apresenta reivindicações que precisam ser consideradas. Atualmente, a conta não fecha para os motoristas", destaca.

Antes do recente anúncio de aumento das tarifas para algumas regiões do Brasil, por exemplo, a Amasp diz que o reajuste não acontecia desde 2015. A entidade ainda considera os percentuais insuficientes em meio às disparas de preços dos combustíveis.

"O que definirá se os apps continuarão autossustentáveis será a conciliação entre seus próprios ganhos e das expectativas dos usuários e motoristas. A Uber, por exemplo, deve achar uma maneira para que a corrida seja lucrativa sem passar o excedente ao passageiro. É um cobertor curto. Se cobre a cabeça, descobre os pés", complementa Barcellos.

Com a saída e banimento de motoristas, podemos estar vivendo o início de um movimento das plataformas em busca de outros meios de deslocamentos com uso dos seus aplicativos. É assim que avalia Guillermo Petzhold, especialista em mobilidade urbana da WRI Brasil, instituto internacional de políticas públicas.

"A oferta do carro poderá ser apenas um dos meios de transportes. Isso é um modelo de negócio em que as empresas poderão ter uma cartela maior de serviços", projeta.

Ceder aos motoristas pode ser o caminho

Se as plataformas de mobilidade continuarem com o modelo atual de negócio, será necessário encontrar, em um futuro pós-pandêmico, um ponto de equilíbrio entre os lucros, motoristas e passageiros. Será um dos principais dilemas a serem revolvidos após a crise, avalia Petzhold.

"Com a saída dos motoristas, teoricamente se torna mais fácil atingir um valor de tarifa maior aos prestadores. Por outro lado, o passageiro vai esperar mais para conseguir carona ou custo menor. O que é preciso acontecer? Um reequilíbrio".

A resposta para tornar as plataformas cada vez mais atrativas aos motoristas e passageiros pode estar no aumento das tarifas sem repassar ao usuário ou elevar o percentual do valor que fica com o prestador serviços.

"A saída seria essas plataformas cederem um pouco e entenderem que os motoristas é que fazem funcionar o sistema", diz o pesquisador Nicolo Zingales, da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

Zingales ainda cita a transparência dos apps com os motoristas em relação aos cálculos das corridas como outra alternativa para voltarem ao "normal" em curto prazo. Isso faria o prestador de serviço deixar de aceitar e depois cancelar a viagem, pois saberia antes se vale a pena.

"Cancelam corridas e são banidos, mas ninguém sabe como isso funciona, qual o limite disso, o motivo de algumas corridas serem direcionadas para uns e não para outros, a justificativa do valor do percurso. Parece uma caixa preta", conclui.

O que dizem Uber e 99

Em nota ao Tilt, a Uber informou que os cancelamentos de maneira recorrente "prejudicam intencionalmente o funcionamento da plataforma" e "atrapalham outros motoristas e usuários que apenas desejam gerar renda ou se deslocar".

Questionada, a empresa não informou qual o limite que o motorista pode cancelar e se pode ser reincorporado à plataforma. O aplicativo também não informou a periodicidade que promove a retirada.

Já a 99 disse que limita os cancelamentos, mas também não disse a quantidade aceitável nem a periodicidade. Por outro lado, as recusas, diz, são "sem ônus, seja para motoristas parceiros ou passageiros", a exemplo de banimentos.

A 99 ainda afirmou que não registrou alteração no número de motoristas cadastrados, mas aumento de demanda pelo serviço.