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Pelourinho vai ganhar câmeras de reconhecimento facial; isso é bom ou ruim?

San Júnior/Uai Foto/Estadão Conteúdo
Imagem: San Júnior/Uai Foto/Estadão Conteúdo

Sarah Alves

Colaboração para Tilt

01/03/2021 04h00Atualizada em 15/03/2021 19h50

Sem tempo, irmão

  • O objetivo é auxiliar na busca por foragidos e identificar placas de veículos
  • Esse tipo de tecnologia tem se expandido nas principais cidades do Brasil
  • Estudos mostram que reconhecimento facial erra mais com negros e pessoas trans
  • Especialistas falam sobre entraves de privacidade e reflexos na segurança pública

Todo mundo que andar pelas ruas do centro histórico de Salvador, um dos principais pontos turísticos da capital baiana, terá o rosto monitorado por câmeras. A previsão da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo é que o equipamento de reconhecimento facial esteja em pleno funcionamento até outubro para auxiliar a polícia na busca por foragidos da Justiça e identificar placas de veículos.

O uso desse tipo de tecnologia em espaços públicos tem se expandido cada vez mais pelas principais cidades do Brasil, levantando questionamentos sobre privacidade e a precisão da ferramenta.

A própria Salvador já faz uso de câmeras com reconhecimento facial desde o Carnaval de 2018. As cidades de São Paulo e Rio de Janeiro também já contam com câmeras instaladas em locais públicos capazes de fazer o reconhecimento facial de pessoas.

Ainda que, no caso de Salvador, a tecnologia tenha se mostrado eficaz ao identificar 199 pessoas que estavam foragidas desde que foi instalada, especialistas demonstram preocupação com o uso desse tipo de tecnologia. Há pesquisas que mostraram que o reconhecimento facial pode ter mais erros quando está relacionado a pessoas negras e transexuais.

Como vai funcionar

A prefeitura afirma que as câmeras farão o monitoramento completo da área, focando na limpeza urbana e fiscalizando os vendedores ambulantes. As imagens serão analisadas em uma central montada na sede da GCM (Guarda Civil Metropolitana), mas o reconhecimento facial será feito exclusivamente pela SSP-BA (Secretaria de Segurança Pública da Bahia), segundo informou a Tilt o secretário de Cultura e Turismo de Salvador, Fábio Mota.

Ao passarem pelo Centro Histórico, todas as pessoas serão submetidas à identificação via reconhecimento facial, cruzando a biometria com o banco de dados de procurados. Quando alguém com 90% ou mais de similaridade for identificado, um agente na região vai realizar a abordagem e levar a pessoa à delegacia.

O sistema vai contar com câmeras que serão distribuídas em locais estratégicos já definidos, a central de monitoramento 24 horas alocada na sede da GCM de Salvador e rádios-bases com Wi-Fi e megafones — que vão possibilitar a comunicação em tempo real com os pedestres.

O secretário Fábio Mota afirmou que o sistema de câmeras implementado pela Secretaria de Cultura e Turismo será usado com foco maior no turismo, "até porque segurança pública é um dever do Estado e não do município". "Nosso objetivo é o turismo. É deixar o Pelourinho mais seguro, tentar aperfeiçoar a gestão que se tem hoje", afirmou.

Todo projeto conta com o investimento de R$ 14 milhões do Prodetur (Programa Nacional de Desenvolvimento do Turismo) e do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).

Onde fica a privacidade das pessoas?

Questionado sobre os dilemas de privacidades da tecnologia, o secretário de Cultura e Turismo afirmou que o uso seguirá todas as normas de segurança. "Nós vamos fornecer as nossas câmeras à Secretaria de Segurança Pública do Estado. Eles já fazem esse trabalho na cidade, respeitando a Constituição e as leis", disse.

De acordo com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), o reconhecimento facial em políticas públicas deve seguir princípios que visam, sobretudo, a privacidade e transparência de uso das biometrias.

Segundo a advogada Maria Cecília Gomes, líder de projetos de proteção de dados da FGV (Fundação Getúlio Vargas), lei dispõe que o cruzamento das imagens coletadas por reconhecimento facial com os bancos de dados de órgãos públicos deve seguir os parâmetros de transparência e proteção, em que a população deve saber que está sendo filmada e com qual intuito.

"O dever da transparência é fundamental e precisa ser cumprido. O tratamento de dados biométricos cruzados com outras informações que constam na base de dados do governo, como nome, CPF, endereço, precisa ser feita de maneira adequada e legítima, de forma que respeite o direito à privacidade e à proteção dos dados pessoais dos titulares afetados", diz a advogada.

Gomes explicou ainda que mesmo com o crescente debate impulsionado pela LGPD, a maioria da população ainda é leiga quanto aos direitos sobre as tecnologias.

Tilt questionou a SSP-BA de que maneira o governo tem informado às pessoas sobre a coleta desses dados biométricos. A pasta afirmou que as informações do sistema de reconhecimento facial são disponibilizadas via notas oficiais no site da secretaria.

O órgão informou ainda que os locais das câmeras são confidenciais para não atrapalhar o trabalho de vigilância e que apenas imagens acima de 90% de semelhança são salvas no sistema.

E se o sistema reconhecer a pessoa errada?

Ainda que úteis, tecnologias dotadas de reconhecimento facial têm sido alvo de críticas por parte de especialistas, que afirmam que elas podem ser discriminatórias. De fato, estudos já indicaram que ela pode ter mais erros entre pessoas negras e transexuais, por exemplo. Isso se dá pela ausência de perfis representativos na formatação do sistema.

Em um país com população diversa, como o Brasil, os entraves para garantir essa pluralidade podem ser ainda maiores.

O professor Roberto Hirata, do IME-USP (Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo), afirma que a tecnologia "é o sonho de qualquer ator do sistema de segurança pública ou privado", mas que é preciso ter cautela.

"Os riscos são enormes, principalmente em um país no qual a diferença da ação e de sua intensidade dependem da cor da pele da pessoa, da idade, sexo, gênero. Quantas vezes não ouvimos casos de pessoas humildes que são presas por terem o mesmo nome de algum procurado e ficam meses na prisão?", questiona.

Em junho de 2020, por exemplo, o chefe da polícia de Detroit (EUA) afirmou que o sistema de reconhecimento facial em vigor na cidade norte-americana errava 95% do tempo após a prisão por engano de um homem negro. Meses depois, em setembro, o departamento de polícia foi condenado a indenizar um homem negro preso injustamente em 2019.

No Rio de Janeiro, uma mulher foi presa em julho de 2019 após ser confundida com uma procurada pela polícia. Levada à delegacia, ela ficou detida por uma hora e foi liberada depois de se constatar a falha no sistema.

A Secretaria de Segurança Pública da Bahia afirmou que, até o momento, não registrou nenhum caso de falso positivo (quando se tem alta porcentagem de assertividade, mas não se trata da pessoa). O órgão disse ainda que não divulga os nomes dos presos identificados pelo sistema, seguindo a Lei de Abuso de Autoridade.

Fronteira entre parte turística e vida real

A especialista em segurança pública Mariana Possas, uma das coordenadoras do Laboratório de Estudos sobre Crimes e Sociedade da UFBA (Universidade Federal da Bahia) acredita que esse tipo de monitoramento precisa ser pensado em conjunto pelos órgãos para não reproduzir os problemas atuais na região do centro histórico de Salvador.

Segundo ela, é problemático que se priorize o turista na questão da segurança pública local, isolando quem mora nas proximidades, como se existisse uma fronteira entre o Centro Histórico e a região próxima.

"A população de turismo vai ter uma experiência diferente, um tipo de território, vigilância e garantia da ordem. A população local vai ficar separada", comenta.

Possas afirma que essa diferenciação já existe na região e que o uso de novas tecnologias por si só não vão resolver o problema da segurança.

"O que aconteceu no Centro Histórico? Tem uma área em que você circula bem e aí tem outra em que você sai para as ruas em volta e não é um lugar de turismo e nem adequado. O que você vê ali é que não existiu um projeto para a população", afirma.

Um caminho para coibir os problemas, de acordo com a especialista, está nas "reflexões humanística, histórica e filosófica" da região e suas especificidades para o bom investimento do sistema.

"Se no fundo a tecnologia não vem junto com uma compreensão mais sofisticada, mais ampla de segurança, que não signifique cercamento, eu acho que ela vai reproduzir os mesmos problemas que existem historicamente", afirma.